segunda-feira, 12 de maio de 2008

A sete dicas de Tinhorão para ouvir "Cartola"

Mais uma seção que o Vermute com Amendoim estréia. "Está dito" tentará resgatar os melhores textos publicados em jornais sobre shows e discos e entrevistas de diversos artistas. Para começar José Ramos Tinhorão fala sobre o primeiro disco de Cartola, lançado em 1974, quando Cartola tinha 65 anos:

“Pouco mais de seis meses após produzir para a Odeon o melhor elepê de Nélson Cavaquinho (Nélson Cavaquinho, CMOFB – 8809), o paulista J. C. Botezelli, o Pelão, acaba de confirmar sua condição de boa fada dos melhores compositores populares brasileiros com o lançamento de um novo trabalho de sua resposabilidade: o elepê Cartola (Disco Marcus Pereira 403.5007).

Por incrível que pareça, esse disco que só a perspectiva histórica permitirá compreender a verdadeira importância, no futuro, é o primeiro long-play de um dos poucos verdadeiros gênios da música popular brasileira, o compositor Angenor de Oliveira, chamado Cartola.

(...) Em certo sentido, porém, foi bom que o primeiro elepê de Cartola tivesse demorado tanto. Graças ao entusiasmo de Pelão e ao sentido cultural do trabalho de Marcus Pereira, o disco Cartola é perfeito. Sem citar o próprio compositor, que canta suas músicas com um admirável sentido de interpretação (de agora em diante, cantor que gravar samba de Cartola precisa ouvi-lo primeiro, para aprender), o elepê reúne dez dos mais competentes músicos populares brasileiros ligados à fonte popular, a saber, Horondino Silva, o Dino, e Jaime Florence, o Meira (violões), Valdiro Tramontano, o Canhoto (cavaquinho), Raul de Barros, fazendo uma espécie de gloriosa reentrée (trombone), Nicolino Cópia (flauta), Gilberto (surdo e pandeiro), Milton Marçal (cuíca e caixa de fósforo), Roberto Pinheiro, o Luna (tamborim e agogô), Jorge da Silva, o Jorginho (pandeiro), e Wilson Canegal (ganzá e reco-reco).

Dirigidos por Horondino José da Silva, o maior violão de sete cordas do Brasil, o que fizeram esses músicos e ritmistas? Ofereceram ao velho Cartola, com aquele sentimento de alegre companheirismo do povo, a melhor, mais competente, mais criativa e mais bonita moldura musical que qualquer compositor-cantor poderia esperar, para nela exibir seu talento.

Assim, fica difícil apontar o que é melhor nesse disco sem defeitos desde a capa, onde Cartola sorri, por trás dos seus óculos escuros, numa foto granulada que o mostra indefinido e único como os insondáveis mistérios do seu próprio gênio criativo. Dizer qual dos sambas do disco é o melhor? Mas como, se qualquer um deles só pode ser comparado aos de Nélson Cavaquinho, e quando se pergunta ao próprio Nélson Cavaquinho qual é o maiôs compositor brasileiro ele responde – Cartola.

De qualquer forma, há algumas recomendações que um estudioso de música popular brasileira pode fazer ao público, e que passo a enumerar: 1º) comprar com urgência o elepê de Cartola e, após ouvi-lo dez ou vinte vezes em seguida, começar a pressionar os amigos a fazerem o mesmo, sob pena de não poderem mais falar em música popular; 2º) atentar bem para certas passagens de sambas de Cartola, e comparar sua harmonia com o que os compositores da geração bossa-nova afirmaram ter sido a maior contribuição do movimento à música popular brasileira; 3º) ouvir com atenção o violão de Dino; 4º) demorar-se na apreciação do trabalho de trombone de Raul de Barros, em suas duas pequenas intervenções; 5º) procurar avaliar bem a riqueza do ritmo, não apenas na parte da percussão, mas de todo o conjunto; 6º) sentir o imprevisto, a originalidade e a beleza poética de certos versos (atenção para os sambas em parceria com Carlos Cachaça) e 7º) tirar o chapéu para os artistas das camadas populares urbanas brasileiras.

Porque este long-play de Cartola revela, afinal de contas, é esta verdade que qualquer pessoa imbecilizada pela cultura de massa sabe muito bem: quando a grandeza da criação repousa no espontâneo, fora do povo não há salvação. E é com ele que se deve aprender”.
José Ramos Tinhorão - Jornal do Brasil (11 de junho de 1974)

Baixe no Um que Tenha o disco Cartola, de 1974

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Um comentário:

Anônimo disse...

Eu segui os conselhos desse jornalista. Tenho esse long play do Cartola comprado em 1975. Guardo com muito amor, mas já está todo riscado de tanto ouvir. Recentemente tive que comprar o CD, senão não poderia mais ouvir o Cartola.

Abraços ao pessoal do Vermute!

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