quinta-feira, 20 de maio de 2010

Uma conversa de PAS e Tinhorão

Já faz um tempinho que li a ótima entrevista que o jornalista Pedro Alexandre Sanches fez com o historiador e crítico musical José Ramos Tinhorão. Gostaria de destacar algumas partes:

PAS - Então espera aí, deixa eu tentar fazer isso um pouco, na medida que eu consiga. Aí tem o outro livro (Crítica Cheia de Graça, editado pelo Empório do Livro, com uma seleção de críticas, ensaios e entrevistas publicadas por Tinhorão na imprensa nas décadas de 60, 70 e 80)...

JRT - (Ele interrompe.) Mas não tem só esse, também tem o da editora 34, A Música Popular Que Surge na Era da Revolução (livro inédito, lançado pelo Tinhorão de hoje, aos 82 anos). Nesse livro, por exemplo, há uma parte em que examino o século XVIII francês e digo que foi marcado pela influência da música militar, e portanto não poderia ter herdado uma música popular no sentido de produto para ser gostado por pessoas que cantam e tocam e ouvem alguém tocar um instrumento, conversas românticas, não existia. Aí venho para Portugal. Há dois gêneros que aparecem em Portugal, mas não são portugueses: a modinha e o lundu, que foram levados por um mulato brasileiro chamado Domingos Caldas Barbosa (tema de seu livro O Poeta da Viola, da Modinha e do Lundu, publicado pela Editorial Caminho de Lisboa em 2004).

PAS - São dois ritmos brasileiros na origem, segundo você.

JRT - Isso, e eu faço uma coisa absolutamente original nesse livro. Os principais países da Europa eram França e Inglaterra, naturalmente, e Alemanha. Então por que é que logo dois gêneros de uma colônia de um país europeu, Portugal, que era um dos países não mais importantes da Europa, vão surgir dois gêneros que vão persistir no tempo e chegarão a ser gravados depois na colônia do Brasil, de onde eles foram para lá, no século XX? Veja que o primeiro disco gravado na Casa Edison foi Isto É Bom, que é um lundu. Ora, o mesmo lundu que foi lançado no século XVIII em Portugal por um mulato brasileiro chamado Domingos Caldas Barbosa. Eu te pergunto: por que se deu esse fato?, o que explica esse fato? Aí o Tinhorão, na segunda parte do seu livro que está aí na sua mão, explica: Portugal tinha se fechado para a Europa, com medo da Revolução Francesa, que estava pondo abaixo as cabeças coroadas e trazia a república, transformava o cara em cidadão, e isso acabava com os privilégios da nobreza. Como Portugal tinha um regime absolutista que preservava exatamente as garantias que eram conferidas à nobreza, ele tinha horror às chamadas ideias sediciosas, ou seja, revolucionárias. Então Portugal se fecha para a Europa. Mas como um país não pode viver culturalmente fechado, ele tinha que se abrir para algum lugar. Se se fechava para a Europa, se abria para a sua colônia americana. E por que se abria para a sua colônia americana? Porque era da sua colônia americana no século XVII que estava chegando o ouro das Minas Gerais que salvava aquele país das suas dificuldades econômicas. Essa relação nunca ninguém fez, e está aí.

PAS - Você está dizendo que a música brasileira, num longo espaço de tempo, nasceu de ideias contrarrevolucionárias, conservadoras?

JRT - Não, aí você está tirando uma conclusão. Não nasceu de ideias contrarrevolucioárias, mas sim surgiu num período explicável pelo fato de Portugal ter se fechado para a Europa, que vivia um momento revolucionário, e acabou se tornando acessível a formas que chegavam da sua colônia distante da América. Não há essa correlação que você estabeleceu, modinha e lundu não têm nada que ver com o que Portugal pensava na época. Mas teve que ver por que é que chegou lá. Vamos supor que a França estivesse tão bem com Portugal que estivesse exportando para Portugal um monte de gêneros de música. Nunca que modinha e lundu iam poder chegar, porque o espaço da cultura portuguesa estaria ocupado pela música dos mais desenvolvidos.

PAS - E aí a história da música brasileira seria completamente outra também?

JRT - Também, porque talvez tivesse começado mais cedo a dominação do mercado musical pelos gêneros vindos de fora. Os gêneros vindos de fora sempre foram muito fortes no Brasil? Foram. No século XIX, com o aparecimento do teatro musicado, vieram para o Brasil a valsa, o schottische, a polca, a mazurca. Mas elas conviveram com os gêneros nacionais. O modinheiro, o mulato que ia cantar uma modinha debaixo da janela da namorada, não cantava nenhum gênero europeu. Ele cantava uma modinha. Quando apareceu o disco, no início do século XX, você pega os discos da Casa Edison – estão lá para você ouvir no Acervo Tinhorão (no Instituto Moreira Salles) –, tem valsa, schottische, quadrilha, mazurca... Mas tem também a modinha, o lundu, gêneros aqui do mundo rural que eventualmente eram lançados em disco. Porque a indústria cultural ainda não existia como uma indústria impositiva. Ela produzia difusamente gêneros que coexistiam no mercado. Esse é que é o grande problema. Quando a indústria cultural ganha, do ponto de vista capitalista, um peso em termos de dólares, um peso econômico tão grande, ela exclui o mais. Por que, como estávamos falando, quando você liga a televisão e o rádio em qualquer parte do mundo ocidental hoje está tocando rock? Porque a evolução da tecnologia ligada ao processo capitalista da produção de sons se tornou tão forte que escolhe um produto para globalizar. Por que ela globaliza um gênero só? Porque é mais econômico. Você já pensou se uma multinacional ficasse tocando na Argentina os vários gêneros argentinos, no Chile os vários gêneros chilenos, no Brasil os vários gêneros brasileiros? Não haveria rendimento, do ponto de vista capitalista. Mas se ela criar uma média de som que serve, que ela impõe para todo o mundo e depois não precisa mais impor porque todo mundo aceita, ótimo.

PAS - No Brasil, então, a imposição vai se dar na época da bossa nova e nos anos 60?

JRT - Antes da bossa nova, porque antes você já tinha o bolerão. Depois você tem o iê-iê-iê do Roberto Carlos, não é?

PAS - E aí não para nunca mais.

JRT - Não para nunca mais. O que para é a existência no mercado de alguma coisa que não seja aquilo ditado pela indústria cultural.

PAS - Então, mas antes eu ia perguntar sobre o livro das críticas reunidas (ele começa a interromper), deixa só eu orientar uma pergunta específica que eu queria fazer: queria que você falasse um pouco sobre a origem do que você escreveu quando escrevia na imprensa, sobre sua metodologia a partir da luta de classes, do marxismo, do materialismo dialético.

JRT - Pois é, quando você lê um artigo do Tinhorão na década de 70 no Jornal do Brasil, o que você nota? O disco que saía era um pretexto para uma análise que não era apenas crítica, ele canta bem, não canta bem, fulano é melhor, gostei, não gostei, este é bom, este é não. Não era. Eu pegava o fenômeno e procurava interpretar do ponto de vista histórico e sociológico. Por exemplo, “ah, o Tinhorão não gosta de nada que é novo”, não é que eu não gosto do que é novo. É que o que é que é novo? Num país subdesenvolvido, não há o novo. O novo é do país desenvolvido, rapaz. Eu te pergunto: existe automóvel brasileiro? Não. Existe automóvel ou da Fiat, italiana, ou da Wolksvagen, alemão, ou da Ford e Chevrolet, americanos. Não existe, não existe. Aqui se montam automóveis. Existe avião brasileiro? Não, a Embraer faz a casca.

(...)

PAS - O que fico sentindo ao ler suas críticas tantos anos depois é que consigo concordar com muitos argumentos seus, com as bases do que afirma sobre a bossa nova ou sobre a música como produto de mercado. Mas não concordo que eu precise rejeitar toda a música que se faz por conta dessas restrições – até porque eu não conseguiria.

JRT - Mas eu não rejeito! Eu não rejeito, rapaz, eu não rejeito. Aquilo que eu falava eu dava uma explicação para dizer. A minha implicância com a bossa nova, por exemplo, era por quê? Porque a bossa nova é música americana montada no Brasil. Eu sempre sustentei, você pode ver meus primeiros textos. A única coisa original do que se chama de bossa nova é a batida de violão do João Gilberto. Não é nem o que ele canta, é a ba-ti-da. Se você comparar o que existe gravado até o aparecimento de João Gilberto, ouça o som dos violões, como era tocado o violão? Aí de repente aparece a batida do João Gilberto. Use o seu ouvido, não precisa saber música. Tinha alguma coisa antes tocada desse jeito? Não. Ora, se não tinha o cara inventou. Se inventou, para mim, o cara criou uma coisa. Agora, o que se montou em cima do que se convencionou chamar de bossa nova? Se montou harmonia e até melodia de música americana, rapaz! Se você quiser um exemplo, vá ao seu computador quando você largar o telefone e procure no YouTube a Judy Garland cantando Mr. Monotony, anota aí.

(...)

PAS - Então desculpe, eu interrompi, você ia falar algo sobre a gravação da Judy Garland.

JRT - Muito bem. Eu te disse que bossa nova é música americana montada no Brasil, não falei? Pois bem, eu não vou dizer o que é. Surprise. Ligue a internet, procure no YouTube Judy Garland cantando Mr. Monotony, de 1942. Quando você ouvir você vai dizer: “Opa! Mas isso aqui é do fulano de tal!”. É de um grande compositor de bossa nova brasileiro, gravado em 1942 nos Estados Unidos pela Judy Garland.

PAS - Quando esse compositor nem era atuante ainda...

JRT - Era criança. Você quer uma outra? Já que você está na internet, pegue a Overture da Ópera dos Três Vinténs, de Kurt Weill. Os versos são de Bertolt Brecht, mas não interessa, é só a Overture, que não tem letra, evidentemente, é uma abertura musical. A abertura musical da Ópera dos Três Vinténs, do Kurt Weill, de 1928, ligue que você vai reconhecer um tema de um grande compositor de bossa nova brasileiro.

PAS - É o mesmo daquele outro?

JRT - É o mesmo.

PAS - Então, mas não haveria um meio termo? A gente sabe dessas coisas, está consciente delas, mas pode conviver com a bossa nova mesmo assim.

JRT - Mas é claro que pode! Você não vai matar a bossa nova, você tem que conviver.

PAS - Você ficou marcado como o cara que queria matar, que não aceitava nada disso.

JRT - Mas eu não queria matar nada. Eu nunca disse “isto tem que acabar”. Eu quereria matar se alguma vez tivesse escrito “isto não se admite”. Eu duvido que você veja alguma vez eu falando coisas nesses termos.

PAS - Sim, mas é que foi interpretado como se fosse.

JRT - Aaah, mas cada um interpreta como quer!

Gostou? Não deixe de conferir a entrevista completa no blog do PAS

Nenhum comentário:

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...