quinta-feira, 17 de junho de 2010

Tira os óculos e recolhe o homem

A única parceria de Moreira da Silva e Jards Macalé, "Tira os óculos e recolhe o homem", surgiu de um caso verídico ocorrido em 1978, durante um show dos dois em Vitória. Como o Brasil estava em plena ditadura militar, a censura, que estava de olho em tudo o que era artista, andava afiada.



Mesmo assim, Jards resolveu provocar: saiu do roteiro e cantou a marcha "Casca de ovo", que debochava de um dos candidatos à presidência, Magalhães Pinto. A música dizia: "Será que esse pinto sobe / será que esse pinto desce / será que esse pinto murcha / será que esse pinto cresce". Pronto. No dia seguinte após o show, o quarto do hotel de Jards estava cheio de milicos espadaúdos.

No site da Funarte, tem um depoimento do Jards sobre o caso: "Às 6 h da manhã fui acordado em meu quarto por três homens fortes, pareciam armários de 10 de frente por 29 de fundos. Um deles me cutucou e disse: ‘Polícia Federal. O doutor delegado quer falar com o senhor’. Respondi: ‘Tudo bem. Mas não saio sem falar com Moreira da Silva’. Ele disse: ‘Sou fã dele, pode falar’. Logo depois virou para os dois outros policiais e ordenou: ‘Enquanto isso, vamos dar uma geral no quarto’. Pensei: ‘Ai, meu Deus!’. Telefonei para o Moreira, que estava dois andares abaixo do meu: ‘Moreira, os hôme tão no meu quarto’. Moreira abriu um bocejo e respondeu firme: ‘Nos encontramos no saguão’. Quando desci escoltado pelos policiais, Moreira da Silva já estava nos esperando no saguão do hotel, vestindo seu impecável terno branco, sapato bicolor e chapéu panamá. E disse: ‘Meus filhos, o que está havendo com meu menino?’. O policial: ‘Moreira, sou seu fã. O delegado mandou buscá-lo’. ‘Posso ir com vocês?’, sorriu Moreira. ‘É uma honra’, respondeu o policial. Entramos num pick-up chapa fria e partimos para a Polícia Federal. O policial sabia todo o repertório do Moreira. ‘Você conhece essa?’, perguntou Moreira. E começou a cantar: ‘Pra se topar uma encrenca / basta andar distraído / que ela um dia aparece / não adianta fazer prece / eu vinha de ontem lá da gafieira / com minha nega Cecília / quando gritaram…diz aí!’ E o policial feliz, deu o breque: Olha o Padilha. Não acreditei que estava vivendo aquilo”.

Quando chegaram na delega, a coisa ficou pior: "Entramos na sala do delegado e ele perguntou sem nos olhar: ‘Qual de vocês dois é o tal do Macalé?’ Moreira tentou tergiversar: ‘Mas doutor delegado…’ O delegado rosnou: ‘Cala a boca!’ e voltou a perguntar: ‘Qual de vocês dois é o tal do Macalé?’ Moreira, botando o chapéu sobre o peito, olhou pra mim e murmurou baixinho: ‘Acho que desta vez você se fodeu’. O delegado olhou pra mim e disse: ‘Tira o óculos, recolhe o homem e incomunicabilidade com ele. Ficha, tira o retratinho e bota o número em baixo’”.

Macalé moveu seus pauzinhos. Falou com o governador da época, Elcio Álvares, que não obteve sucesso. Falou com o ministro Ney Braga, que enfim conseguiu soltar Jards.

Claro que deu samba, né? E Jards gravou em 2001, num disco em homenagem ao seu novo amigo, Kid Morengueira.

Tira os óculos e recolhe o homem

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