quinta-feira, 28 de abril de 2011

Fala, Paulo César Pinheiro

No aniversário do mestre Paulo César Pinheiro, republico uma entrevista feita em 2003 por Luiza Nascimento, do jornal A Nova Democracia

“Você corta um verso eu escrevo outro”

Você é considerado um dos letristas mais avançados do Brasil. Quando começou a compor?
Paulo César Pinheiro - Eu comecei com treze anos; já escrevia e fazia música. Mas, como todo começo, de maneira muito infantil, e sem nenhuma pretensão de ser um compositor e viver disso. Aconteceu. E, até então, eu não era nem um bom aluno de português, por exemplo. Na escola, eu chegava a matar aula de redação porque não tinha jeito para escrever.

E também quase não lia?
Absolutamente nada. De repente, um estalo, que em literatura chamamos de “estalo de Vieira”, uma expressão nascida do Padre Antônio Vieira. Eu estava em férias escolares, lá por Angra dos Reis, onde passei grande parte da minha vida. Nasci em Ramos, mas nas férias eu ficava na casa do meu avô, pescador, que sempre me levava para o mar. Numa noite de lua cheia, já meio agoniado, e o lugar atuando em mim de uma maneira que eu não entendia, aquilo começou a mexer comigo. Virei um tigre na jaula. Fiquei andando para lá e para cá, até que, em um determinado momento, por instinto, peguei uma folha de papel, um lápis, e escrevi um verso. Quando terminei de escrever o verso, a agonia passou. Só consegui dormir tarde da noite. A partir daí comecei a escrever.

Quando eu voltei das férias, já queria ler, pegar tudo que via. Associei-me a uma biblioteca pública, entre o Largo da Carioca e a Cinelândia e, como morava em São Cristóvão, saía de casa cedo, pegava dois livros na biblioteca e lia os dois no mesmo dia. Na manhã seguinte, fazia o mesmo. E virei um leitor voraz. Não tinha nenhum conhecimento em literatura. Lia os filósofos gregos, os romances brasileiros — os regionais, principalmente. Virei um bom aluno e a música veio junto, também sem explicação.

E quando a música virou profissão?
Bom, ainda aos 14 anos, era meu vizinho, em São Cristóvão, o João de Aquino, um violonista e compositor primo do Baden Powell. E o Baden já fazia muito sucesso no mundo. Ele tinha uma parceria sólida com o Vinicius e havia passado dois anos na França. Comecei a compor, a querer entender o processo musical. Disse para o João que a gente tinha que fazer música, e dava o exemplo do Baden. Então, ele mudou do acordeom para o violão, e nós começamos a esboçar as primeiras músicas. Muitas, eu já vinha com as idéias prontas, e ele as desenvolvia. É dessa fase, talvez a minha música mais conhecida e mais gravada: Viagem. Eu tinha 14 anos e as pessoas se assombravam um pouco com isso.

O João foi o meu primeiro parceiro, o Baden veio logo em seguida. Houve um batizado da sobrinha dele, em Olaria e o João me levou à festa para conhecê-lo. Foi a primeira noite que eu passei fora de casa. O Baden tocou naquela noite. A irmã dele pediu que cantássemos para ele. Nós cantamos e ele adorou. A partir daí ele passou a me procurar e nos tornamos amigos. Ele me buscava em casa e me levava para as noites. Meu pai achava que música era coisa de vagabundo; só me deixava sair porque era com o Baden Powell.

Comecei a conhecer a noite, os compositores, os cantores, sempre ao lado do Baden. Mas nunca tinha imaginado ser parceiro dele. Eu ia fazendo as minhas músicas com o João. Até que, aos 16 anos, o Baden me disse: “Tá na hora da gente compor alguma coisa juntos.” E aquilo me deu um certo susto, porque o Vinicius naquela época era considerado o maior compositor, o maior letrista do Brasil. Ele tinha uns 50 e poucos anos e eu 16, sendo ele, para mim, uma referência, difícil de encarar. Mas o Baden insistiu e eu topei, com um pouco de medo.

Ele me deu uma música e eu fiz a letra. De primeira, eu não achei que estivesse legal, embora ele tivesse gostado. Voltei para casa e refiz uma letra definitiva. A parceria embalou, e essa, mais tarde, foi a minha primeira música gravada, um samba chamado Lapinha. Em 1968, concorreu num Festival da Record chamado “A Primeira Bienal do Samba” e ganhou, defendida pela Elis, no auge do seu sucesso.

Talvez tenha sido um dos maiores Festivais de todos os tempos. Participaram Pixinguinha, Nelson Cavaquinho, Cartola, João da Baiana, etc., abrigando gente da velhíssima guarda e os que estavam começando: o Chico Buarque, o Billy Blanco, o Elton Medeiros, eu, o Sidney Miller... E só tinha música boa. Mas só tinha craque. E eu era completamente desconhecido, além de ser o caçula.

Os festivais tomavam o horário nobre da televisão brasileira: era a “novela das oito” da Globo de hoje. Os cantores da época passaram a me procurar, pedindo música para gravar. Daí em diante todo mundo gravou meus trabalhos. Todo ano a Elis gravava uma música minha. Além dela, a Elizeth Cardoso, o MPB-4, Nana Caymmi, etc.

Como era fazer música na época do gerenciamento militar?
Olha, eu participei de movimento estudantil, e naquela época os diretórios eram células fortes dentro das faculdades. Os estudantes se reuniam e discutiam o mundo, ao contrário do que ocorre hoje. Os meninos estão sem ideal, perdidos, não sabem o que fazer. A gente com 16, 17 anos estava querendo mudar o mundo. A gente se reunia, ia para rua, brigava.

A partir do momento em que comecei a gravar, já fui tendo problemas com a censura. Tive muita música censurada, discutia com o censor; um suplício porque eram muito ignorantes. Tinha uma música, também de 68, Sagarana, cuja letra eu fiz em homenagem ao Guimarães Rosa, um dos meus escritores prediletos, a ponto de chegar a dominar sua linguagem e a escrever igual a ele se eu quisesse. Fiz essa composição assim, como uma letra de música semelhante à sua literatura. Ela foi muito comentada. Partia de uma idéia inusitada, diferente, original. A censura alegou que ela havia sido escrita em linguagem cifrada, de código, e a canção foi vetada.

Fui discutir na censura com um livro do Guimarães Rosa debaixo do braço. E disse para o censor: “O nome dessa música é Sagarana, por causa desse livro”. Mas era muito difícil conversar com esses caras.

Outra minha, Cordilheiras, ficou cinco anos presa numa gaveta de censura. Eu acabava virando uma bola de ping-pong naquele prédio da polícia federal, em Brasília, de sala em sala. Quanto mais argumentava, eles, não tendo saída para os nossos contra-argumentos, mandavam-nos para outro censor. No final, caíamos no primeiro, de novo. Era um inferno, tanto a censura federal, quanto a local, na esquina da Senador Dantas com a Álvaro Alvim. Nós escrevíamos por metáforas, fazíamos o que era possível para que a música pudesse passar.

Algumas músicas claramente contra o regime passavam, outras, que não tinham esse teor, eram vetadas. Por que isso?
Uma lupa se voltava sobre o que era dito pelas pessoas marcadas. Outras, não. Músicas de carnaval, aquelas rotuladas de “brega”, sempre passavam batidas, eram carimbadas e liberadas. Certa vez aconteceu um fato curioso com uma música, minha e do Maurício Tapajós, chamada Pesadelo, que virou um hino de guerra. Quando fizemos a música, mostramos para o pessoal do MPB- 4: “Não adianta nem pensar na gravação; não vai dar nem pé”. E a gente disse: “Se passar, vocês gravam?”. Um pouco descrentes, eles responderam sim.

Fui contratado pela Odeon e fiz um disco em 72. Comecei a entender o funcionamento das gravadoras, e via como elas mandavam as músicas para a censura. Num determinado momento, a censura nem aceitava mais a letra escrita, queriam a gravação, porque na gravação poderia conter uma segunda intenção. Então eu disse: “Olha, eu vou fazer uma malandragem. Vou mandar essa música no meio de um bolo que a Odeon sempre manda.” Era um período em que havia muito material para mandar. Tinha um disco do Agnaldo Timóteo, com aquelas canções derramadas, e outras coisas românticas. Pedi a um funcionário da casa que enfiasse Pesadelo no meio desses discos. Assim, a música veio liberada. E o MPB-4 a gravou.

Mesmo depois de liberada, as pessoas tinham medo de gravar, mas o MPB-4 sempre foi valente. Apesar disso, toda vez que eles cantavam Pesadelo, ninguém entendia como tinha passado pela censura. As emissoras de rádio começaram a não tocá-la.

E qual a música desse período que mais te marcou?
Pesadelo, sem dúvida. Contaram que durante a Guerrilha do Araguaia, na selva, eles cantavam Pesadelo. Dizem ter sido a música que mais ajudou, nessa fase de luta armada, a todos eles, a mais forte politicamente que a gente fez, e a única direta, sem subterfúgios, sem metáforas, que passou.

Quem mais lhe influenciou na literatura e na música?
Numa canção nova que ainda não foi gravada, chamada Guardados, de parceria com o Sérgio Santos, eu cito os nomes dos meus poetas de cabeceira: Drummond, Vinicius, Cecília, Cabral, Pessoa e Bandeira, que eu lia muito. Mas muitos romancistas também me influenciaram literariamente: Jorge Amado, José Lins do Rêgo, Agripa Vasconcelos, João Felício dos Santos, que era um romancista histórico, autor de Zumbi dos Palmares e Chica da Silva.

Musicalmente não há nada de político. Influenciei-me pelo que ouvi desde menino e pelo que ouvi depois, adulto, quando fui olhar para história, para evolução musical, ou seja, pelos autores que no começo do século passado moldaram a alma brasileira. Noel, Dorival Caymmi, Ataulfo Alves, Ary Barroso, Pixinguinha, João da Baiana. E os chorões, que são os mais antigos de todos.

As pessoas falam muito do samba como se ele fosse o começo da história musical popular do Brasil, e não é. A primeira música gravada com o nome de samba foi Pelo telefone, do Donga. Pela primeira vez saiu no disco Samba de Donga. Isso, no começo do século passado. Os chorões são do começo do século retrasado.

Agora mesmo saiu uma série, pela Acari Records, a gravadora da minha esposa em parceria com Maurício Carrilho. O projeto, da Petrobrás, se chama “Os princípios do choro”. Eles abordaram um período que vai de 1840 a 1880, ou seja, nem chegaram no século XX, nem chegaram no Pixinguinha, e fizeram 15 CDs. Trata-se um registro da história do choro, desde o primeiro chorão. Todos os músicos são mestiços, não apenas negros ou brancos. O primeiro de que se tem notícia, um sujeito chamado Henrique Alves Mesquita, era mestiço e foi estudar música na Europa, a mando do imperador. Lá, namorou a mulher de um rei europeu e foi preso. Ficou dois anos preso na Europa — a história brasileira já começa a esculhambar! — e aí voltou. Só que a corte não quis mais saber dele, e ele foi tocar na rua. Nessa coleção de 40 anos, há a história de cada um desses caras. E quando o samba começou a ser feito eram eles que acompanhavam os sambistas, faziam as harmonias e tocavam.

Em que a mestiçagem contribuiu para a evolução da música brasileira?
A mestiçagem brasileira fez com que a música desse certo. A música negra pura é fraca, é primitiva, mas ritmicamente forte. A música do branco ritmicamente é fraca e melodicamente forte. Quando misturou, deu nisso: uma música diferente, com a identidade brasileira, que está se perdendo de novo graças ao massacre de manifestações estrangeiras, principalmente as “americanas”.

O Brasil criou uma “raça” nova. E eu sou um produto disso. Minha avó é uma índia de uma tribo guarani de Bracuí, misturada com inglês. Meu pai é caboclo, paraibano, mistura de índio com negro. Meu avô não tinha sobrenome. Tem gente que diz: “Ah, o samba é africano”. Não é, não... O samba é brasileiro, tem o semba africano, que nem é parecido. O africano não tem idéia do que seja samba.

O que há no Brasil é um sistema político infeliz que massacra a cultura de seu país. O ministro da Cultura, representando o Brasil como ministro, toca reagge lá fora! Quando ele pensa em fazer alguma coisa com as comunidades empobrecidas usa formas que não são brasileiras. Como um compositor vira ministro da cultura de seu país e canta música de outro país? Porque não canta a dele, que é bem melhor? É só mercado, grana! Ele não está preocupado com a cultura popular. Por que não toca Procissão, Domingo no parque, lá fora? Ele possui um cargo e está representando o país dele, ou seja, não tinha nem que estar cantando e dançando. Mas já que está, dance e cante a coisa de seu país. Não precisa cantar a música do Jimmy Cliff que é da Jamaica, ou então vai ser ministro na Jamaica.

Hoje, a música “americana” dominou o Brasil. Quando a música brasileira dos anos 60 em diante tomou conta do mundo, eles se assustaram, por que um país de Terceiro Mundo não pode ter a música mais bonita do mundo. E daí abafaram essas manifestações, já que as gravadoras são todas transnacionais. Começaram, assim, a jogar o lixo deles para cá, que já poluiu mais de duas gerações.

E a mais recente produção brasileira?
Muita gente faz música brasileira, só que está todo mundo nos becos, de onde é difícil sair. Primeiro, o sistema é corrupto, as emissoras de rádio, que fazem parte desse sistema, são corruptas, e as transnacionais compram todos os horários que as rádios têm para a música. Eles pagam para tocar o produto deles e para não tocar o nosso. Os discos independentes raramente são tocados nas rádios. Hoje, o que se ouve nessas emissoras é música feita no Brasil, mas não é a música brasileira.

A partir do golpe militar para cá houve a interrupção do processo evolutivo musical do Brasil, porque o ‘americano’ tomou conta de tudo. Essa interrupção, que data do final da década de 70, fez com que uma geração depois da minha não conseguisse botar o pescoço para fora.

A princípio, surgiram o Pixinguinha, o Dorival, o Noel Rosa, o Nelson Cavaquinho, o Cartola. Posteriormente, o Baden, o Tom, o Carlos Lyra e, logo depois, a minha geração, Dori, Edu Lobo, Francis Hime, Milton Nascimento, um monte. Essa geração seguinte a minha foi achatada, não pôde mais mostrar a cara; foi esmagada pelo massacre estrangeiro. No lugar que hoje poderia estar o samba mais bonito do mundo, está um rap que não é brasileiro — que não é nem música, aliás, é uma forma de verso falado com um ritmo chato embaixo. Aquilo que a gente dizia, a revolução que a gente trazia nas letras da nossa época, tinha como base músicas muito bem feitas. Hoje, a reclamação é feita com a música do país contra o qual se reclama. Ou seja, está tudo errado.

E você acredita que isso possa mudar?
Acredito nos que estão agora com 17, 18 anos — a nossa geração quando começou tinha essa idade — e que vão mexer nisso. Existem nesses guetos e becos pessoas pondo mais o pescoço para fora, tendo mais condições porque o processo industrial se deteriorou. Hoje, qualquer pessoa faz o seu próprio disco em casa, não precisa mais de gravadora. Esses meninos mais novos, do beco, estão retomando esse processo. Duas gerações depois, não vão mais precisar dessas gravadoras para coisa alguma.

As gravadoras tendem a desaparecer?
Vão desaparecer. Em função desse processo tecnológico que muda a cada momento, daqui há uns cinco anos as gravadoras não vão mais existir. Elas, primeiro, fecharam seus estúdios. Músicos, compositores e artistas construíram seus próprios estúdios. As gravadoras alugam estúdios para gravar. Agora com Internet, com o MP3, as pessoas vão fazer o disco e vender em casa. A Acari vende muito mais disco pela Internet. As gravadoras já não têm função. E ficam reclamando da pirataria, mas foram eles que inventaram a pirataria.

Há oito anos eu via um programa de TV, desses que passam nas tardes de domingo, e o Amado Baptista, aquele cantor de Belém, estava com um disco na mão reclamando que o disco dele não tinha saído ainda e que ele tinha comprado o disco num camelô. A capa do disco, no caso, não estava nem pronta. Se a capa não estava pronta e o disco também não, como é que ele comprou o disco no camelô? Quem pirateou? As gravadoras. Então foram elas que começaram o processo e agora o feitiço virou contra o feiticeiro. Agora, elas estão sendo pirateadas mesmo. Além disso, governos anteriores isentaram as gravadoras do ICMS, para que elas investissem na cultura brasileira, em discos não industriais. Com esse dinheiro, elas, ao invés de investirem na cultura, pagaram o jabá, e foi assim que começou a história.

E a que se deve essa mentalidade?
Deve-se ao processo da colonização mesmo. O Brasil foi um país colonizado por diversas nações. Por fim, os ‘americanos’ tomaram conta de vez. A Barra da Tijuca é um grande exemplo disso. Foi o último bairro do Rio de Janeiro a crescer e, em menos de 10 anos, cresceu como nenhum outro. Mas nas ruas você vê até a Estátua da Liberdade. E tudo tem nome em inglês. É um padrão de comportamento único. Em qualquer lugar que você vá todos são iguais. E a juventude, sem dúvida, é a mais atingida, está em formação. O mesmo acontece com a religião, que sempre pega o mais fraco, o ignorante, o inculto, aquele que está precisando de um milagre na vida. É por isso que esses templos se alastraram pelo Brasil inteiro e esses pastores estão ricos. Porque se aproveitam da camada mais pobre da população, a que está perdida.

O imperialista crava a cultura dele no meio da sua, esmaga a sua e a cospe fora. Todos os meninos, hoje, falam inglês. Hoje se escuta muito mais inglês do que português. As gírias, criação do povo e fazem parte da mutação da língua, são em inglês.

A ‘globalização’ padronizou a cultura, a arte, o ser humano. O ‘americano’ tomou conta não só do Brasil ou da África, mas de todo mundo. São os xerifes que impõem as suas regras, seus costumes, para o mundo inteiro. Existe uma série de trabalhos que precisam ser feitos no Brasil: a democratização dos meios de comunicação, a regionalização das coisas... O cara do sertão do Cariri, do Ceará, canta Michael Jackson. É aquela história que diz em um samba do Maurício Tapajós com letra do Aldir Blanc: “O Brazil não conhece o Brasil”. Poderia ser diferente, não fossem os péssimos líderes e governantes.

Está surgindo algo no Brasil que te atrai?
Adianta citar? Você conhece Pedro Amorim? Roque Ferreira? Não adianta, o repórter não vai nem escrever isso, não interessa, não chama atenção de ninguém. Agora, essas pessoas não estão na ‘mídia’. Por exemplo: Estruturou-se em três anos uma gravadora chamada Biscoito Fino que faz exatamente isso: grava pessoas que ninguém conhece ou que as grandes gravadoras já mandaram embora, que foram descartadas. Além dela, tem a Acari, a Kuarup, a Lua; são vários selos. Hoje existem mais selos independentes do que gravadoras. E 90% da música de qualidade são produzidas pelos selos independentes. Gravadora é para Zezé de Camargo e Luciano, ou seja, produto para vender e no ano seguinte ninguém sabe o que aconteceu; é descartável, não é história, não é arte. Não é música, é entretenimento. Arte é atemporal e entretenimento é temporal. Por isso, os que formaram a nossa identidade estão aí, até hoje.

E a geração de músicos que fizeram sucesso nos anos 80?
É uma geração muito fraca, culturalmente falando. É a geração que lê gibi, não lê livros. A maioria dos grupos de rock — que eles chamam de rock brasileiro, mas isso não existe — tem nomes tirados de gibi: Barão Vermelho, Jota Quest... Ou seja, eles só leram gibi e jornal, não podem fazer uma bela poesia, mesmo que tenham talento. E se tem talento, geralmente não partem para esse caminho. No que diz respeito à poesia e à música, o sujeito pode ser analfabeto, como é o caso do Patativa do Assaré, João do Vale ou Cartola. Alguns tiveram oportunidade de estudar, mas mal fizeram o primário. Esses garotos da década de 80, no entanto, foram criados sob o massacre. E fizeram suas músicas, que não eram brasileiras, de acordo com as que eles ouviam: o rock. E a literatura deles, na minha opinião, é literatura de redação de ginásio, do cara que lê gibi.

Afinal, o que é gênero musical no Brasil?
Hoje, os contratos de edição das músicas são muito engraçados, porque você tem que assiná-los e dizer em que gênero a sua música se encaixa. Só que isso é feito segundo uma lista previamente elaborada pelos conglomerados editoriais. Tem coisas absurdas! Você pega a crítica musical de jornal e os especialistas dizem: MPB, samba, pagode... É tudo a mesma coisa. MPB é música popular brasileira. Então o baião está incluído nisso, o samba está incluído. O pagode não é gênero musical, o pagode é uma festa, é sinônimo de festa de samba. Daí, diante dessa superficialidade estrangeira, quando você tem um conhecimento profundo a respeito de alguma coisa, dizem que você é radical. Mas radical é aquele que foi na raiz e aprendeu, sabe dialogar a respeito do que aprendeu, diferente desse pessoal. Então, as pessoas te rotulam de radical, como se isso fosse um xingamento. Essa ignorância passa adiante todo dia, essas formas musicais que muitos, hoje, chamam de gênero e que não são. O samba e a MPB não são duas coisas diferentes.

Estou fazendo o julgamento de seleção do prêmio Tim, o antigo prêmio Sharp. E está lá: categoria MPB, categoria pagode, categoria samba. É uma enxurrada de coisas ruins. E sempre, alguma coisa boa, é de um selo independente. Os melhores instrumentais são de selos independentes, as revelações também.

Em que outros projetos você está envolvido?
Estou lançando pela Griphos (um selo da editora Forense) o Clave de sal, o meu quarto livro publicado. Eu o dedico ao Jorge Amado, ao Dorival Caymmi e a meu avô que é pescador. O livro só tem poemas sobre o mar.

Tenho um disco novo. Na primeira semana de dezembro já vai estar nas lojas. Chama-se O lamento do samba, com 14 músicas minhas, sem parceria. Pela primeira vez, duas gravadoras se juntaram para fazer um projeto, e duas gravadoras independentes: a Acari e a Biscoito Fino. Fizeram um selo chamado Quelé, em homenagem a Clementina de Jesus. Eu estou inaugurando esse selo, mas já existem 12 selecionados para dar prosseguimento ao projeto. Roque Ferreira será o segundo. Há também o Pedro Amorim, o Maurício Carrilho, a Amélia Rabello, ou seja, pessoas das novas gerações que vão poder botar o pescoço para fora através do Quelé.

Quando se fala em samba, fala-se em Zeca Pagodinho, no Arlindo Cruz, no Sombrinha, mas tem um outro samba aí que ninguém fala porque não está no ar. E as gravadoras geralmente não querem gravar, já que não se trata daquele samba de refrão fácil que se ouve duas vezes e você sai cantando na terceira. É outro samba, um samba que vem mais dessa linha evolutiva que foi interrompida. E o samba do Baden, do Ary Barroso, é um outro samba que ficou para trás. E muitos chamam de “samba de raiz”, que é pejorativo. Por desconhecimento, muitas vezes quando alguém regrava, por exemplo, um samba do Noel Rosa, com uma vestimenta mais do som padronizado, da moda, as pessoas engoliam sem saber que aquilo é de 1930. Mas se gravarem do jeito que a música é, dizem que é velho. É muito mais uma visão de forma.

Por que o samba anda tão alegre ultimamente?
O pagode, por exemplo, era uma reunião onde se tocava samba, uma festa de samba. E pagode de repente virou um gênero musical. E daí misturaram aquelas baladinhas sem-vergonha da jovem guarda com o samba e deu isso que está aí. Eu fiz um samba recentemente com Pedro Amorim chamado A voz de Nagô, que o Naná Vasconcelos gravou. E ele diz o seguinte: “O samba é uma canção de guerra / não foi só feito para brincar”. Ou seja, o samba também é uma reunião de brincadeira, mas nasceu diferente. Ele nasceu como um canto de guerra do negro massacrado pela escravidão. Isso quer dizer que o samba perdeu o que ele tinha, a parte mais bela dele. Esses pagodes que tocam no rádio são muito alegres para o meu gosto. O lamento que o samba trouxe lá de trás, que provém do sofrimento de quem o criou se perdeu, já não é nada mais. É por isso que meu disco se chama O lamento do samba, o que tem dois sentidos: são sambas de lamento, e é o samba se lamentando de ter perdido o seu lamento. Eu continuo: “O samba é uma canção de guerra / e não foi só feito pra brincar / pra ser feliz ainda não dá / enquanto um negro, um só negro, um só chorar”. Ou seja, enquanto houver miséria e esse sofrimento da maioria negra no gueto, comendo lixo, ninguém pode ficar na TV rebolando e brincando com a forma séria que construiu a identidade musical do povo brasileiro. Samba é uma coisa muito séria.

E quando eu digo lamento, eu não digo tristeza, não. O samba de lamento das décadas anteriores, de 50 para trás, eram músicas de carnaval. Agora, olha os temas: “Passava noite vinha dia / o sangue do negro corria, dia a dia / De lamento em lamento / de agonia em agonia / ele pedia o fim da tirania”. Isso é samba de carnaval. Você admite isso num baile de carnaval hoje? Mas isso era samba de carnaval. E a marca do negro, do lamento, está lá. Escutar um samba de enredo de carnaval é como se tivesse escutado todos, é tudo a mesma coisa. Aquele belo samba que o Silas de Oliveira fazia, com cuidado, não se faz mais, porque o importante, fazem crer, não é o povo aprender, refletir, é fazer o povo se “animar”.

E sobre as parcerias com gerações de compositores?
Peguei cinco gerações e me sinto um privilegiado. Comecei com uma geração acima da minha, com o Baden, doze anos mais velho do que eu. Aí também estavam o Tom, o Carlos Lyra, o Menescal. Tornei-me parceiro desses três. E parceiro também dos músicos da minha geração: Dori Caymmi, Francis Hime, Edu Lobo. Mas ainda era o caçula deles; todos já completaram 60 anos e eu 54. E a geração seguinte, de onde saíram o Aldir Blanc, o João Bosco, também é mais velha que eu. E através dos mais velhos, da geração do Baden, eu conheci os ainda mais velhos: o Radamés Gnatalli, o Pixinguinha, o Mirabeau, o Ribamar, e me tornei parceiro deles. O Pixinguinha é centenário e foi meu parceiro. Daí, veio a geração do Maurício Carrilho, do Pedrinho Amorim, do Sérgio Santos, os parceiros com os quais eu faço músicas. Já alcancei uma quinta geração: a do filho do Baden, do qual sou padrinho. Tem 24 anos e é meu parceiro. Então, passei por cinco gerações.

Está para ser feito um disco com a cantora e atriz Soraya Ravelli só de músicas minhas. E um disco para mostrar esse leque por onde eu já passei, só com composições inéditas. Vai pegar desde o Pixinguinha até o Felipe. Um de 24 anos outro de cento e tal. Vai se chamar O arco do tempo, se não me engano. É daí que vem esse meu conhecimento da cultura popular. O Pixinguinha nasceu em 1897. Para chegar a ser parceiro de um Pixinguinha ou de um Radamés Gnatalli você tem que entrar de cabeça, ir lá nos primórdios para conhecer a sua história, e não ficar uma superficialidade. O Prêmio Shell começou com o Pixinguinha e com o Villa-Lobos e eu sou o 23° a ganhar esse prêmio. Estou ganhando pelo conjunto da obra, que são cerca de 900 músicas gravadas, e feitas mais de 1.500. Tenho mais de 600 inéditas, na gaveta, saindo aos poucos. Quando eu morrer vocês terão que me aturar muito tempo! (risos) Mas a arte não tem pressa. A minha contribuição para esse processo é fazer, não é nem falar muito, para que as pessoas entendam da onde é que nós viemos.

Está sendo editado também um livro de uma jornalista, a Conceição Campos, sobre a minha obra, uma tese de mestrado, de 2001. Já saíram dois livros a meu respeito, ou seja, já existe uma história. E, para isso, a dedicação foi total, eu me entreguei completamente.

2 comentários:

Rosa López disse...

Muito oportuna a publicação da entrevista, caro Fel. Texto extenso para a superficialidade dos dias atuais, mas uma delícia de degustar e totalmente necessário. Paulo César Pinheiro é um mestre a ser reverenciado. Agradeço muito por ele existir e por fazer chegar aos nossos ouvidos, cérebros e corações o que brota de seu interior e clama por se expressar, desde os 13 anos. Jóia rara.

Anônimo disse...

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