sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Entrevista póstuma com Noel Rosa

Segue, na íntegra, uma entrevista bastante divertida publicada no "O Pasquim" em maio de 1973. Quem assina é o jornalista Sérgio Cabral.

Trinta e seia anos depois de sua morte (morreu dia 4 de maio de 1937), procurei Noel Rosa para uma entrevista.

"Eu não tenho o que dizer. O que você quiser saber está na minha obra", disse ele modestamente.

O resultado foi esta entrevista. Se não estiver boa, não ponham a culpa exclusivamente no repórter. Afinal o entrevistado não dá entrevista há, pelo menos, 36 anos.

O PASQUIM - Você, um cara cheio de problemas de saúde, não saía dos bares, bebendo a noite inteira, batendo papo etc.
NOEL ROSA - Saber sofrer é uma arte. E pondo a modéstia de parte, eu sei sofrer.

O PASQUIM - Então você sofreu pra burro.
NOEL ROSA - Mesmo assim, não cansei de viver.

O PASQUIM - Mas as mulheres, de vez em quando, faziam você sofrer mais ainda.
NOEL ROSA - Quem sofreu mais do que eu, não nasceu.

O PASQUIM - Uma de suas mulheres foi até visitá-lo quando você estava doente. Mas você estava fora. Por que ela foi lá?
NOEL ROSA - Porque pretendia somente saber qual era o dia que eu deixaria de viver.

O PASQUIM - Você sofreu várias decepções, mas continuou amando.
NOEL ROSA - Nunca se deve jurar não mais amar a ninguém.

O PASQUIM - Quer dizer que você não tem nada contra o amor.
NOEL ROSA - Quem fala mal do amor não sabe a vida gozar.

O PASQUIM - Mas você, de vez em quando, fala mal de mulher.
NOEL ROSA - A mulher mente brincando e, às vezes, brinca mentindo.

O PASQUIM - Explica isso melhor.
NOEL ROSA - Quando ri está chorando e quando chora está sorrindo.

O PASQUIM - Você sabe que se a Betty Friedman o conhecesse teria uma tremenda bronca de você, que é contra mulher trabalhando...
NOEL ROSA - Todo cargo masculino, seja grande ou pequenino, hoje em dia, é pra mulher.

O PASQUIM - Mas o que é que atrapalha isso, Noel?
O PASQUIM - E por causa de palhaços, ela esquece que tem braços. Nem cozinhar ela quer.

O PASQUIM - Mas os direitos são iguais.
NOEL ROSA - Os direitos são iguais, mas até nos tribunais a mulher faz o que quer.

O PASQUIM - Então não são tão iguais assim.
NOEL ROSA - Pois o homem já nasceu dando a costela à mulher.

O PASQUIM - Essa história não é bem assim, não. É preciso discutir.
NOEL ROSA - Mas não quero discussão.

O PASQUIM - Da discussão sai a razão.
NOEL ROSA - Mas, às vezes, sai pancada.

O PASQUIM - Você gosta mesmo é de samba, não é?
NOEL ROSA - O mundo é um samba em que eu danço sem nunca sair do meu trilho.

O PASQUIM - Você acha mesmo o samba um troço importante?
NOEL ROSA - Exprime dois terços do Rio de Janeiro.

O PASQUIM - Tenho vários amigos que não gostam de samba, querem voar mais alto.
NOEL ROSA - Mas quem voa em grande altura leva sempre grande queda.

O PASQUIM - Não fale assim, Noel, os caras podem se chatear.
NOEL ROSA - O que eu falo é bem pensado. Não receio escaramuça. E que aceite a carapuça quem se sente melindrado.

O PASQUIM - Assim como você está falando, o que é que quer que pensem de você?
NOEL ROSA - Que entre nós o páreo é duro.

O PASQUIM - Mas vão acabar seus inimigos.
NOEL ROSA - Meus inimigos, que hoje falam mal de mim, vão dizer que nunca viram uma pessoa tão boa assim.

O PASQUIM - Pelo que vejo, não se pode falar mal do samba perto de você.
NOEL ROSA - O samba é a corda e eu sou a caçamba.

O PASQUIM - Você não tem medo de ninguém?
NOEL ROSA - Sou independente, como se vê.

O PASQUIM - Independente? Está rico?
NOEL ROSA - Não consigo ter nem pra gastar.

O PASQUIM - Ou seja: tá durão.
NOEL ROSA - Já estou coberto de farrapo, eu vou acabar ficando nu. Meu paletó virou estopa e eu nem sei mais com que roupa eu vou pro samba que você me convidou.

O PASQUIM - Você não vai porque está com medo dos malandros do samba.
NOEL ROSA - Não tenho medo de bamba. Na roda do samba, eu sou bacharel.

O PASQUIM - Como é que é esse negócio de bacharel?
NOEL ROSA - Quando me formei no samba, recebi uma medalha.

O PASQUIM - Você vive em tudo que é samba, não é?
NOEL ROSA - A polícia em todo canto proibiu a batucada. Eu vou pra Vila onde a polícia é camarada.

O PASQUIM - O samba em Vila Isabel é de noite ou de dia?
NOEL ROSA - O sol da Vila é triste. Samba não assiste porque a gente implora "Sol, pelo amor de Deus, não venha agora que as morenas vão logo embora."

O PASQUIM - Mas tem samba em outros lugares, Noel.
NOEL ROSA - Salve Estácio, Salgueiro, Mangueira, Oswaldo Cruz e Matriz.

O PASQUIM - E a Vila, como é que fica nisso?
NOEL ROSA - A Vila não quer abafar ninguém. Só quer mostrar que faz samba também.

O PASQUIM - Conforme você disse, o samba exprime dois terços do Rio de Janeiro.
NOEL ROSA - Mas tenho de dizer: modéstia à parte, meus senhores, eu sou da Vila.

O PASQUIM - Assim não pode, Noel. Com esta banca, é melhor a gente acabar a entrevista.
NOEL ROSA - Ofereço meu auxílio. Passe bem, vá pela sombra.

O PASQUIM - Está me mandando embora, Noel?
NOEL ROSA - Não mandei você embora porque sou benevolente.

O PASQUIM - Sabe que se você dissesse isso para certos jornalistas, eles entenderiam como um desafio para briga?
NOEL ROSA - De lutas não entendo abacate.

O PASQUIM - Ué, eu soube que você já lutou profissionalmente.
NOEL ROSA - Cheguei até ser convidado para subir num tablado pra vencer um campeão.

O PASQUIM - E daí, venceu?
NOEL ROSA - Mas a empresa, pra evitar assassinato, rasgou logo meu contrato, quando me viu de roupão.

O PASQUIM - E como é que você se vira com esses valentões?
NOEL ROSA - No século do progresso, o revólver teve ingresso para acabar com a valentia.

O PASQUIM - Você sabe que Josué Montello...
NOEL ROSA - Escreve sal com c cedilha.

O PASQUIM - Pois é. Ele agora é da Academia Brasileira de Letras, junto com o Pedro Calmon.
NOEL ROSA - Dessa vez, juntou-se a fome com a vontado de comer.

O PASQUIM - Mas ele têm prestígio por aí, numa certa roda.
NOEL ROSA - Vassoura dos salões da sociedade.

O PASQUIM - Você não freqüenta essa roda, não é?
NOEL ROSA - Você pode crer que palmeira do Mangue não vive na areia de Copacabana.

O PASQUIM - Vamos falar mal das pessoas. E o Roberto Campos, hein?
NOEL ROSA - Que é também brasileiro. E em três lotes vendeu o Brasil inteiro.

O PASQUIM - Sabe que andaram pichando você sob o pretexto de que você é bom de letra mas não de música?
NOEL ROSA - Sendo as notas sete apenas, mais eu não posso inventar.

O PASQUIM - Bem, Noel, vamos acabar a entrevista. Adeus.
NOEL ROSA - Adeus é pra quem deixa a vida. Três coisas vou gritar por despedida: até manhã, até já, até logo.

AS FONTES
As respostas estão contidas nos seguintes sambas: Eu sei sofrer, de 1937, gravação de Aracy de Almeida; Provei (parceria com Vadico), de 1936, gravação de Marília Batista e Noel Rosa; Nuvem que Passou, de 1932, gravação de Francisco Alves; Você Vai se Quiser, de 1936, gravação de Noel Rosa e Marília Batista; É Preciso Discutir, 1931, gravação de Francisco Alves e Mário Reis; Até Amanhã, de 1932, gravação de João Petra de Barros; Quem Dá Mais, de 1932, gravação de Noel Rosa; Vitória (parceria com Nonô), de 1932, gravação de Silvio Caldas; Fita Amarela, de 1932, gravação de Francisco Alves e Mário Reis; X do Problema, de 1936, gravação de Aracy de Almeida; Com que Roupa?, de 1930, gravação de Noel Rosa; Feitiço da Vila (com Vadico), de 1934, gravação de Noel Rosa e João Petra de Barros; Boa Viagem (com Ismael Silva), de 1934, gravação de Aurora Miranda; Tarzan, o Filho do Alfaiate (com Vadico), 1936, lançado no filme Cidade Mulher por José Vieira; AEIOU (com Lamartine Babo), de 1934, gravação de Noel Rosa e Lamartine Babo; Onde Está a Honestidade?, de 1933, gravação de Noel Rosa; Mais um Samba Popular, de 1937, permaneceu inédito até 1962, quando foi gravado por Ana Cristina.

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